terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Juíza Ângela Dumerque: “De todos os lugares onde trabalhei, é em Dois Irmãos que eu me sinto em casa”


A juíza Ângela Roberta Paps Dumerque reassumiu a Comarca de Dois Irmãos na semana passada. Três meses depois de ser transferida para a cidade de Marcelino Ramos, a magistrada concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal Dois Irmãos, contando a batalha que enfrentou junto ao Conselho Nacional de Justiça para voltar a Dois Irmãos, como está a situação do Fórum em relação aos processos judiciais e quais são os seus planos para 2010. Acompanhe:
JDI - Qual era o ritmo de trabalho quando deixou Dois Irmãos, no início do mês de setembro, e como a senhora encontrou a Comarca agora, depois de três meses?
Juíza Ângela -
Quando saí, deixei os processos zerados. Tudo estava encaminhado. Para termos um paradigma, vamos fazer um levantamento dos números de 2008 e 2009. No ano de 2008 foram proferidas 728 sentenças e realizadas 1.635 audiências no cível e crime. Agora, de janeiro a agosto de 2009, quando deixei a Comarca, foram proferidas 445 sentenças e realizadas 1.142 audiências. São 306 sentenças e 493 audiências a menos. São números grosseiros. Isso tudo a gente vai precisar colocar em dia. Todas as audiências que não foram feitas e estão pendentes terão de ser remarcadas. E a situação pode piorar, pois já conversei com vários advogados e, como não havia juiz titular, eles deixaram de entrar com processos novos. Ainda há essa demanda que vai chegar em 2010. Nesses números, também não estão inclusos os despachos do cotidiano. O problema com juízes substitutos é que eles precisam responder pela sua Comarca de origem e mais a da substituição, portanto, o juiz não tinha como vir todos os dias a Dois Irmãos.
JDI - Como pretende organizar o trabalho de agora em diante?
Juíza Ângela -
A situação está muito difícil. Nestes três meses em que fiquei fora, e não por minha culpa, foi deixado de produzir muito na Comarca de Dois Irmãos. Temos 1.553 processos aguardando decisão. Tenho algumas ideias e estratégias para amenizar a situação, mas nem tudo depende somente de mim como magistrada. Antes de sair, eu realizava audiências todos os dias, ou no turno da manhã ou à tarde. Agora, mesmo fazendo as audiências durante todo o dia, não teremos como colocar os processos em dia em menos de um ano, pois além dos processos pendentes, teremos mais os novos que entram todos os anos. Em um levantamento inicial, teríamos de fazer 10 audiências por dia durante um ano, o que é impossível. Em um processo de roubo, por exemplo, em que se tem 10 vítimas-testemunhas, passo um turno inteiro só em depoimentos. Já pensei em várias alternativas. O trabalho está atrasado e o tempo não pára para mim. Para se ter uma ideia de como está nossa situação, quando entrei para a Comarca, em 2004, em fevereiro havia 2 mil processos atrasados, e mesmo com muito trabalho, em novembro ainda tínhamos processo de fevereiro. Sei que eu que tenho que resolver este problema e por isso já conversei com a Defensoria Pública, que vem somente na segunda-feira à tarde - numa semana são trabalhados os casos de família e na outra de crime. Minha ideia é tentar reivindicar com a Defensoria Geral mais um funcionário-emergência para vir mais um dia na semana. Também já conversei com o promotor público para combinarmos as audiências no mesmo dia. Nos processos de família, em 70% dos casos a defensoria é pública e no crime chega a 80%. Vou lutar por essa parceria. No entanto, mesmo conseguindo agilizar o trabalho nestas duas pontas, bato de frente com outro problema sério: uma equipe reduzida e que já está sobrecarregada.
JDI - Como a senhora pretende resolver esta defasagem?
Juíza Ângela -
Temos uma realidade que se arrasta por anos em Dois Irmãos. Desde a fundação da Comarca, na década de 80, a equipe é a mesma, de oito funcionários, sendo que no início eram 500 processos, e hoje são 7.656 por ano. A nossa estrutura física melhorou bastante, foi tudo informatizado, mas tem coisas que jamais irão substituir o ser humano. Há funções que impreterivelmente tem de ser feitas por um oficial de justiça. Não adianta eu me preocupar em marcar audiências e a nossa equipe não conseguir fazer todos os documentos necessários, mandados, enfim.. Se as pessoas não receberem a intimação, elas não virão na audiência. Para a comunidade ter uma ideia do problema, temos apenas dois oficiais para atender Dois Irmãos, Morro Reuter e Santa Maria do Herval. Por ano, eles recebem uma média de 4.073 mandados. Cada um precisa entregar 2.036, sendo que existem casos em que o oficial é obrigado a fazer até cinco saídas para conseguir encontrar a pessoa. Ele precisa ir na residência, no trabalho, enfim, precisa entregar o documento nas mãos do intimado. Vou tentar pleitear junto ao Tribunal de Justiça uma equipe extra para o cartório.
JDI - O que é preciso para conseguir mais funcionários?
Juíza Ângela -
Mobilização política. Este já é um problema de anos e a nossa comunidade não reivindica. A situação foi ficando difícil e assim vai se levando. Não basta a população reclamar da demora no balcão de atendimento do Fórum e falar da insatisfação para mim. É claro que precisamos saber como as pessoas estão se sentindo, mas é preciso mais, é necessário todos se unirem e reivindicarem por seus direitos. A Comarca de Ivoti, por exemplo, que começou recentemente, tem o mesmo número de pessoal que a nossa. Precisamos deixar de nos resignar a tudo isso. Eu, juíza, não posso contratar, posso mostrar nossa realidade e reivindicar com os superiores, mas a mobilização pública também tem uma importância fundamental na hora de conseguir mais funcionários.
JDI - Conte um pouco da batalha enfrentada nos últimos meses e o alívio pela vitória junto ao Conselho Nacional de Justiça.
Juíza Ângela -
Tudo começou em 2006, por uma situação de chefia. Até então, estava tudo ocorrendo de forma tranquila, até que houve uma substituição de chefia imediata. Houve uma incompatibilidade de metodologia de trabalho. Fui reivindicar melhorias e recebi a resposta de que era minha equipe que não queria trabalhar e fazia corpo mole. Ainda me disseram que eu precisava ser mais rigorosa. Não me conformei com isso, pois trabalho há bastante tempo aqui, sei da nossa estrutura e conheço a dedicação dos funcionários que chegam a trabalhar até as 19h, 20h, e ainda ficam no horário do meio-dia. Como essa pessoa nunca teve restrição sobre meu trabalho, começou com ataques pessoais. Começou a investigar minha família e tudo mais. Começou a sustentar que eu não morava em Dois Irmãos e, então, no mês de setembro eu fui transferida pelo Tribunal para Marcelino Ramos. Resolvi recorrer ao Conselho Nacional de Justiça e buscar apoio.
APOIO DA COMUNIDADE
JDI - Como foi tomar essa decisão? A senhora recebeu apoio da comunidade?
Juíza Ângela -
Recebi apoio da Apae, Liga Feminina de Combate ao Câncer, Consepro, Câmaras de Vereadores de Dois Irmãos, Morro Reuter e Santa Maria do Herval; das prefeituras de Morro Reuter e Santa Maria do Herval; da Defensoria Pública, Promotoria Pública, dos deputados Renato Molling - que me apoiou em Brasília - e Mendes Ribeiro, entre outras pessoas. Houve um apoio imenso da comunidade em geral e de diversas lideranças políticas. Com a saída de Dois Irmãos resolvi recorrer de Porto Alegre para Brasília. Foram quatro meses de batalha e consegui uma decisão favorável. Fiquei bem surpresa por toda a mobilização a meu favor. Eu sempre procurei ter uma boa relação social na cidade, exercendo minha função de magistrada, e tinha uma produção eficiente. Se eu não tivesse recorrido, nunca saberia como as pessoas se sentem em relação a mim e ao meu trabalho.
JDI - Em algum momento a senhora pensou em não recorrer da decisão e continuar trabalhando em Marcelino Ramos?
Juíza Ângela -
Em primeiro lugar, não se chega onde eu cheguei sem batalhar. É preciso ser determinada. Desde sempre segui aquilo que eu queria, fiz faculdade em universidade pública e depois passei no concurso para juíza. Com 19 anos de idade eu me mudei para o Mato Grosso. Enfim, com todas essas experiências vividas, me tornei uma pessoa determinada. É do meu jeito de ser o pensamento de não recuar. E como a situação não era justa e eu não estava sendo punida por ser uma má juíza, caso contrário teria feito uma auto-crítica, eu decidi ir atrás do que eu acreditava. Se eu tivesse dúvidas sobre o meu trabalho e não tivesse sido apoiada por tantas pessoas e entidades locais, não teria tido força para seguir em frente.
JDI - Um dos conselheiros do CNJ classificou seu processo como um caso típico de “perseguição”. A senhora se sentiu perseguida?
Juíza Ângela -
Sim, eu me senti perseguida. Não só pelos ataques pessoais, mas perseguida porque eu sentia necessidade de solucionar problemas e não recebia retorno. Por exemplo: pedi treinamento para funcionários para processos de réus condenados e não recebi. Na questão sobre ter mais funcionários, assim que fui transferida, foram mandados três novos para cá e um dia antes do meu retorno, eles foram retirados. Mas não quero levar essa situação adiante. Nunca quis me fazer de vítima ou querer que as pessoas tivessem pena da juíza. Minha defesa foi toda baseada em mostrar o trabalho que realizei na cidade e o reconhecimento que recebi da comunidade por isso.
PLANOS PARA 2010
JDI - O que significa voltar a Dois Irmãos? Por que quis tanto ficar aqui?
Juíza Ângela -
É incrível! Desde o primeiro dia em que comecei aqui na Comarca, me identifiquei com a cidade e sua cultura. De todos os lugares onde trabalhei, é em Dois Irmãos que eu me sinto em casa. Aqui me sinto entendida. Em alguns lugares explico o processo e não tenho a certeza de que as pessoas estão me entendendo. Aqui as pessoas têm a noção exata do que é um juiz e do que ele representa. Nunca fui questionada e minha autoridade sempre foi respeitada. Raríssimas vezes precisei pedir reforço policial. As pessoas não me param na rua, em lojas ou restaurante para falar sobre os processos, elas sabem respeitar a Ângela pessoa e a Ângela juíza. Eu m sinto tranquila aqui e tenho uma profunda admiração pela cidade. Eu me sinto acolhida e procuro estar presente nos eventos nos quais sou convidada. No Estado, há mais de 500 juízes e me sinto numa condição única: na condição de que meu trabalho é aprovado pela comunidade.
JDI - O que as pessoas podem esperar do trabalho do Fórum de Dois Irmãos em 2010. Quais são os seus planos para o novo ano?
Juíza Ângela -
Vou continuar exercendo meu trabalho da forma que sempre fiz, pensando em solucionar os problemas da melhor maneira possível. Neste tempo em que estou na Comarca, criei alguns projetos comunitários como o Conciliação-Família e o More Legal, entre outros. Também comecei uma luta para a construção do novo Fórum. Na semana passada, aliás, fiquei sabendo que a licitação já saiu. Agora já temos o terreno, a verba e a empresa que vai fazer. Falta apenas marcar o início da obra. De toda essa situação que vivi, também aprendi muito. Se não tivesse seguido em frente, nunca saberia desse retorno da comunidade. Com isso, estou me tornando uma pessoa mais aberta, menos resistente aos afetos. Não quero levar essa situação adiante, quero seguir sendo uma pessoa melhor e mantendo meu trabalho fiel como magistrada aqui na Comarca de Dois Irmãos.

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